A União alterou o índice de correção dos depósitos judiciais, substituindo a Selic por um índice oficial que reflete a inflação, como o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo).
A mudança pode afetar tanto novos quanto antigos depósitos, gerando dúvidas sobre retroatividade e possíveis perdas para quem litiga contra a União. Confira abaixo:
União altera correção de depósitos judiciais
Medida, prevista em lei da desoneração, prevê saída da Selic e adoção de um índice oficial que reflita a inflação, como o IPCA
“A União alterou o índice de correção dos depósitos judiciais, que deixa de ser a Selic, taxa usada desde 1998, para dar lugar a um “índice oficial que reflita a inflação” – como o IPCA. A medida está prevista na esperada lei sobre a desoneração da folha de pagamento(nº 14.973/2024), que prevê contrapartidas para ajudar o governo a cumprir a meta fiscal deste ano.
A mudança não foi bem-vista por advogados tributaristas, que a classificam como um “calote” contra quem litiga contra a União, se for aplicada nos valores hoje depositados – ou seja, de forma retroativa. A correção, até então, afirmam, era a mesma ou quase igual a uma aplicação financeira, como títulos do Tesouro Nacional e fundos indexados pelo CDI.
Não há clareza ainda, segundo os especialistas, se a mudança valerá apenas para os depósitos novos ou para os já existentes. Para os antigos, o entendimento predominante nos escritórios é que deveria ser preservada a correção pela Selic. Um ato do Ministério da Fazenda irá esclarecer questões procedimentais, diz a lei.
Com a nova norma, afirmam os tributaristas, o contribuinte não terá mais direito a receber os juros de mora – levando-se em consideração que a Selic compreende correção monetária e juros -, o que seria um tratamento anti-isonômico, já que os créditos tributários são corrigidos pela taxa básica. Hoje, a Selic está em 10,75%, enquanto IPCA, principal aposta dos tributaristas para o “índice oficial”, acumula 4,24% em 12 meses.
A legislação nova também ampliou o escopo dos depósitos. Pela lei anterior – a de nº 9.703/1998, que foi revogada -, a Selic só valia para ações sobre tributos e contribuições sociais. Agora, a nova correção se aplica para dívidas de qualquer natureza (não só tributárias) com a administração pública federal – quaisquer órgãos, fundos, autarquias, fundações ou empresas estatais federais.
A lei poderá afetar os R$ 217,6 bilhões em depósitos judiciais e extrajudiciais. O valor, informado pela Caixa Econômica Federal, são referentes a processos em que a União e toda a administração pública federal são parte. “Esses valores já são acolhidos pela Caixa e repassados à conta única do Tesouro Nacional em D + 1 pela sistemática da extinta Lei nº 9.703, de 1998, diz o órgão por meio de nota ao Valor, acrescentando que “aguarda a publicação de ato do Ministério da Fazenda que regulamentará os procedimentos”.
A advogada Gabriela Lemos, sócia do escritório Mattos Filho, afirma que a nova previsão legal desincentiva o uso de depósitos judiciais – o que prejudica a União a longo prazo, pois é um caixa de uso imediato. “Quando a União vence, o depósito é transformado em pagamento”, diz. Em caso de derrota, porém, o desembolso deve ser feito em 48 horas após o trânsito em julgado.
Agora, acrescenta, a atualização, que antes era pela Selic, será apenas pela inflação. “Isso tende a ser uma preocupação dentro da estratégia do contribuinte de discutir em juízo, porque a Selic é um índice composto. Se passa a ter a devolução dos valores pela inflação, perco a recomposição pelos juros”, afirma.
Os depósitos usados para garantir créditos tributários, por exemplo, diz Gabriela, têm o benefício de suspender a exigibilidade do tributo. Nos casos de seguro fiança e carta fiança, não. “A jurisprudência não tem permitido a não cobrança do imposto.”
Mas essa nova lei, segundo a advogada, pode ser um bom argumento para convencer o juízes a autorizarem a mudança da garantia no processo. “Pode trazer um novo elemento para esses pedidos, porque se fiz o depósito com a expectativa de rentabilidade futura e a regra muda no meio do jogo, faz sentido que haja revisão do posicionamento do contribuinte”, afirma.
Para o advogado João Rolla, sócio do Rodolfo Gropen Advocacia, não há mais a equidade que era prevista na lei anterior. “A União fica com seu dinheiro e usa livremente, ainda que provisione. E ela se remunera com a Selic [correção aplicada nos créditos tributários], então nada mais justo que a devolução do depósito seja feito com a Selic. A diferença entre Selic e índice oficial da inflação é gritante e brutal”, diz.
Uma parte positiva da mudança é pelo viés da tributação. João Rolla lembra de recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que afastou tributação de IRPJ e CSLL sobre correção monetária dos valores corrigidos em depósito judicial, para empresas no lucro real (Tema 962). Pela incidência da Selic, só seriam tributados os juros. Mas como agora a correção é pela inflação, não haveria mais a cobrança. “Agora vou receber menos dinheiro, mas não serei tributado”, afirma o advogado.
Na visão dele, “a União está fazendo um reforço não de caixa, mas de orçamento”. “O dinheiro do depósito já é livre para uso, mas a devolução teria que projetar a Selic. Agora, seria pela correção monetária, o que dá espaço orçamentário”, adiciona.
Segundo o tributarista Rafael Vega, do Cascione Advogados, a lei nova contraria a Súmula 523 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tema 810 do STF, que já havia definido que a Selic seria o índice de atualização para depósitos. “O depósito era como se fosse uma aplicação financeira, só que a regra mudou no meio caminho, o que quebra a confiança e a segurança jurídica”, afirma.
Poderá haver agora, diz o advogado, uma “corrida ao Judiciário” para levantar esses valores, por não valer mais a pena. “Ter depósito neste cenário é queimar dinheiro.” A medida, acrescenta, pode funcionar para a União a curto prazo, mas, no futuro, prejudica, porque “ninguém vai querer mais fazer depósito e comprometer seu caixa”.
Procurados pelo Valor, a Receita Federal, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e Ministério da Fazenda não deram retorno até o fechamento da edição. O Banco Central informou não ter dados sobre o assunto.
FONTE: Valor Econômico
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